O texto a seguir é uma resenha de Geraldo Magella de Menezes Neto sobre o livro “Morrer na guerra: a sociedade diante da morte em combate” da autora Adriane Piovezan, publicado pela Editora CRV em 2017. Adriane Piovezan possui graduação em História pela Universidade Federal do Paraná (1997) e mestrado em Letras pela Universidade Federal do Paraná (2006). É Doutora em História pela Universidade Federal do Paraná (2014) e atualmente pesquisa atitudes diante da morte e do morrer na guerra, aspectos religiosos, e instituições militares.
O livro Morrer na guerra: a sociedade diante da morte em combate é fruto da tese de doutorado da autora, realizado na Universidade Federal do Paraná (UFPR) (2010-2014). O objetivo da obra é analisar as atitudes das sociedades diante da morte nos combates, tomando como exemplo os soldados da Força Expedicionária Brasileira (FEB) pertencentes ao Pelotão de Sepultamento (PS). Piovezan utiliza como fontes: Relatórios individuais do Pelotão de Sepultamento; relatórios de exumação dos cadáveres dos soldados mortos oriundos da Comissão de Repatriamento dos Mortos da FEB; memórias de membros da instituição, publicadas no pós-guerra; monumentos arquitetônicos que se constituem em locais de memória dos mortos em guerra. (p. 19).
A partir do diálogo com a historiografia que trata da morte nas guerras, a autora aponta que há mudanças de atitude em relação aos mortos nas guerras a partir da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Nos conflitos armados anteriores, o normal era o enterro coletivo, em valas comuns e em raríssimas ocasiões o traslado de algum oficial. Sepulturas individuais e com inscrição do nome e data do morto também não eram comuns nas guerras até então. (p. 36).
Com o choque provocado pela escala de mortos na Primeira Guerra, já na Segunda Guerra Mundial há uma preocupação dos países envolvidos em dar um enterro adequado aos mortos nos campos de batalha.
A autora identifica também uma maior importância atribuída a religião no campo de batalha. A luta contra o mal comum, no caso cristãos combatendo contra o ateísmo e o paganismo atribuído aos nazistas, era evidente. O capelão era mais próximo do soldado, realizando um suporte coletivo como individual, acompanhando os homens ao front, ouvindo confissões em diversas ocasiões e simplesmente “ouvindo” os problemas dos soldados. (p. 54). A presença de capelães militares entre os efetivos da Força Expedicionária Brasileira (FEB) teve, muito provavelmente, o efeito de estimular as devoções. (p. 55).
Abordando especificamente o Pelotão de Sepultamento da FEB, Piovezan afirma que este foi criado somente em 4 de julho de 1944, dois dias depois do primeiro escalão da FEB ter zarpado do Rio de Janeiro, levando cerca de cinco mil homens para a Itália. (p. 114). O Pelotão de Sepultamento tinha como objetivos identificar, sepultar e comunicar a perda do soldado o mais rápido possível e de maneira eficiente. Além disso, coletar os pertences do soldado morto para posterior entrega para a família do mesmo era algo que cabia ao pelotão realizar de maneira transparente. (p. 83).
De todas as fontes examinadas, os Relatórios Individuais de Sepultamentos são os que de forma mais direta e precisa informam sobre os objetos encontrados nos corpos dos militares brasileiros mortos em combate da Segunda Guerra Mundial. (p. 118). A autora justifica que tomar os Relatórios Individuais do Pelotão de Sepultamento como fontes para o estudo das atitudes diante da morte por parte dos brasileiros que atuaram na Segunda Guerra Mundial na Campanha da Itália implica em levar em conta a relação entre o seu conteúdo, a realidade que descrevem, e os fatores que podem ter atuado, impactado, interferido no arrolamento e narração dos fatos ali descritos. (p. 118).
Os membros do PS certamente sabiam que, independentemente de raros ou banais, caros ou baratos, pessoais ou indistinguíveis, os objetos, valores ou documentos encontrados com o morto seriam sempre encarados pelas famílias como de incalculável valor afetivo. Para além da afeição, seriam também os últimos objetos terrenos que o morto destinaria aos vivos, o que os ligava de forma inequívoca à ocorrência de toda sorte de reações psicológicas e sensoriais. (p. 124).
A autora afirma que não consta que nenhum dos integrantes do PS tenha sido levado às cortes militares por ter cometido quaisquer crimes ou sequer infrações, de qualquer tipo ou gênero. Desse ponto de vista, não há como deixar de reconhecer que o PS era uma unidade, do ponto de vista disciplinar, impecável, irrepreensível. (p. 126). Reforçando a importância das fontes, não obstante o caráter lacunar, sintético e formalista das informações contidas nos RI do PS, ainda assim elas se constituem num autêntico tesouro histórico. Afinal, trata-se de um manancial de informações sobre ideias, práticas e valores extremamente representativos das atitudes e representações diante da iminência da morte, ou da morte propriamente dita, de importante e significativa parcela de brasileiros, todos homens adultos, para as quais, pelo menos até o momento, não existem quaisquer fontes alternativas. (p. 133).
A autora observa que os soldados na linha de frente travam duas lutas, quase que igualmente árduas e aflitivas. A primeira e mais óbvia é contra o inimigo. A outra, menos conhecida do público, é contra os elementos. Chuva, neve, vento, granizo, frio, calor, poeira, falta de lugar para dormir e satisfazer as necessidades fisiológicas, de hora para comer, etc. são os desafios cotidianos dos combatentes. (p. 148). Se a ação contra o inimigo é eventual, esporádica, a luta contra os elementos da natureza, em especial as intempéries, é uma constante. Viver, comer e dormir ao ar livre, exposto aos elementos da natureza, sem condições de realizar os mais elementares procedimentos de higiene, é a rotina comum a todo combatente da linha de frente na Segunda Guerra Mundial. (p. 148).
Em relação aos objetos encontrados com os mortos da FEB, uma primeira distinção que pode ser feita diz respeito aos objetos de uso religioso e os demais, de uso civil. Os objetos de uso civil são mais heterogêneos. Podem-se classificar os objetos nas seguintes categorias: a) dinheiro, b) objetos de uso pessoal; c) utilidades; d) recordações dos entes queridos e/ou do Brasil; e) documentos. (pp. 142-143).
Se os brasileiros mortos foram, por um lado, econômicos em levar consigo para o campo de batalha objetos de uso pessoal e utilidades, por outro foram pródigos em portar recordações dos entes queridos, do Brasil, ou ambos. Destas, a mais recorrente eram mesmo as fotografias. Nada menos de um em cada oito dos mortos as portavam consigo. (p. 150).
Piovezan observa a importância da religiosidade. Todo soldado que está numa guerra pensa na morte. Preparar-se para a boa morte ou para uma morte tranquila fazia parte dos comportamentos dos homens em combate. As religiosidades num momento de incertezas em que o medo é presente transformavam as angústias em fé. A espiritualidade e o medo de morrer na guerra estão intimamente ligados. (p. 157).
Estes objetos de caráter religioso, nesse contexto, assumem um simbolismo maior ainda. Seu poder de proteção contra a morte ou, caso acontecesse o pior, de garantia de que estaria tendo uma boa morte por portar tal objeto, pode ser interpretada pela dimensão do sagrado. (p. 159). O preparo espiritual era uma forma de proteção contra o medo, o perigo e a morte, elementos presentes em todo esse contexto de guerra. (p. 162). A diferença entre o objeto religioso e o amuleto é tênue. Uma imagem de santo, uma figa ou rosário podem ter a mesma importância para o soldado, enquanto objeto de proteção. (p. 164).
As medalhas religiosas eram itens que apareciam mais frequentemente entre os objetos encontrados nos soldados que morreram em ação. Quase um entre cada dez mortos da FEB tinha consigo uma ou mais medalhas religiosas. (p. 168).
A medalha religiosa, geralmente de prata ou bronze, demonstra a fé ou devoção por um santo da Igreja Católica. A simbologia deste objeto se refere ao fato do seu uso remeter ao contato com o divino. O caráter de adorno deste artefato religioso também é um componente interessante neste contexto. Muitos mortos levavam estas medalhas penduradas em correntes e cordões. Levá-las no peito significava além da demonstração da fé, uma tentativa de proteção contra qualquer tipo de mal. (p. 170).
Uma das estampas de santo mais encontradas nos cadáveres dos brasileiros mortos é de Santo Antônio de Pádua. Os restos mortais do Santo estão exposto na Catedral de Pádua e a visitação e devoção pelo santo são intensificados com estas relíquias sagradas. Provavelmente nos dias de folga muitos brasileiros foram visitar a Catedral do Santo na cidade. (p. 174).
É significativo o número de corpos nos quais foi encontrado o símbolo do Cristianismo. Um em cada vinte e sete mortos tinha um crucifixo, ou seja, trinta e quatro combatentes caídos tinham esse objeto consigo na hora derradeira. (p. 180). No front a presença do crucifixo tinha essa função de meditar sobre o sofrimento de Cristo e considerar menor o seu sofrimento na guerra. (p. 181).
Já em 2 de dezembro de 1944 o Cemitério Militar Brasileiro de Pistoia começa efetivamente a funcionar. (p. 226). O Cemitério Militar Brasileiro de Pistoia exerceu suas variadas funções cemiteriais: identificar e abrigar restos mortais; prestar-se ao papel de local de luto, culto, homenagem e rememoração dos mortos; servir como local de peregrinação cívica e patriótica, etc. Tais funções só viriam a ser definitivamente encerradas com o translado dos corpos para o Brasil em 1960. (p. 232).
Nestes 80 anos do final da Segunda Guerra Mundial a leitura de novas abordagens sobre guerra nos aponta como o tema ainda é fonte inesgotável de pesquisa. O livro de Adriane Piovezan traz à tona personagens que também tiveram um papel fundamental em uma guerra tão mortífera e devastadora: os que faziam parte do Pelotão de Sepultamento.
Diante de cenas de destruição e de corpos muitas vezes irreconhecíveis devido aos impactos das armas, tais membros do PS tinham que cumprir o seu dever, de dar um destino adequado às vítimas da guerra, bem como de encaminhar seus objetos aos familiares. Também são pessoas que devem ser lembradas e reconhecidas pela sua atuação na Segunda Guerra.
Resenha por Geraldo Magella de Menezes Neto, doutor em História Social da Amazônia na Universidade Federal do Pará (UFPA). Professor da Secretaria Municipal de Educação de Belém (SEMEC) e da Secretaria de Estado de Educação do Pará (SEDUC). Administrador da página “História Pública na escola” no instagram (@historiapublicanaescola).